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sábado, 15 de fevereiro de 2014

Despedida de Manuel Viana, por Ana Severo

Despedida em Manuel Viana

Ana Severo (com sua devida permissão)

(Este conto, ainda por ser revisado, é uma ficção a partir das memórias de Maria Brites Jacques e Alfeu Paim Brites, a respeito de episódios da vida de sua família. A literatura se vale da história mas a verdade está na cabeça e no coração de cada um que viveu aqueles tempos distantes do início do século XX. Não tenho a pretensão de traduzir o que realmente aconteceu, ainda que busque, na medida dos relatos existentes, alguma verossimilhança. Desde já me desculpo com essa valorosa família pelas eventuais falhas de uma escritora cheia de fantasias. Comprometo-me a alterar os nomes, quando for à publicação)

Vida de mulher é cuidar de criança, obedecer e lavar roupa, resmunga Ecilda em voz baixa, enquanto troca as fraldas de Eugênio, seu décimo segundo filho. Será que um dia isso vai mudar? O que adiantou registrar a casa em meu nome se vendeu sem me consultar? De pedra alisada, a cozinha bem ampla, cheia de luz, uma varanda para receber os amigos ao som das águas que correm rio abaixo, tudo o que sonhei. Perdido no buraco em que entrou o Banco Pelotense, ano passado. Nunca confiei muito nesta estória de banco. Acabam ficando com o dinheiro da gente. Por que meu marido é tão teimoso, meu Deus? Vendeu a casa e depositou todo o dinheiro no tal banco. Pensa a esposa de Marcirio Brittes, um audacioso homem para quem negociar faz parte do jogo da vida. Lembra a explicação do marido, afastando-lhe as esperanças de evitar a mudança da vila que tanto amava para viver em Santana do Livramento: 

- Ecilda, dinheiro parado não rende. Já não alugamos outra casa para morar, grande como querias? Vou arrendar terras lá para as bandas de Santana. O nosso gado não cabe na Fazenda das Tarimbas, preciso de um campo maior para povoar. Explicou o negociante à esposa, ainda inconsolada. E de mais a mais, isto não é assunto de mulher, completou o homem, dando o assunto por encerrado. Tá te faltando alguma coisa? 

O casamento fora no longínquo 18 de março de 1918, aniversário da noiva, que então completava 17 anos. Que melhor presente pode ter uma moça do que um bom casamento? Diziam as tias à mãe, que misturava a alegria de casar uma filha, com a nostalgia de perdê-la do seu convívio. Antônio Ulisses Paim, pai de Ecilda, emprestou 20 contos para o casal iniciar a vida com um armazém de secos e molhados em São Francisco de Assis. Reconhecia no genro a inteligência e ousadia para o comércio. Não era rico, mas faria dinheiro e nada faltaria para sua filha de olhos cor da água, cabelos de mel e doce cantar. O Passo Novo do Ibicuí é um excelente local para o estabelecimento, incentivava o sogro. 

- As carretas e cavaleiros que passam no caminho das Missões para a Fronteira se abastecem ali na ida e na volta, onde atravessam o rio pela balsa. O povoado é próspero. Foi elevado à vila há dois anos, levando o nome do intendente Manuel Viana, o senhor não sabia? E só tem um bolicho muito pouco sortido, completava Marcirio, entusiasmado. 

Desde então, o casal vive no pequeno povoado à beira do rio que um dia fora a demarcação sul das terras missioneiras. Batizado com o nome de Ibicuí pelos tapes, água do pó da terra, por séculos viveram ao norte os guaranis, ao sul, os charruas e minuanos. A areia branca daquelas margens, testemunha de sangrentas batalhas, ainda traz o gosto sofrido de lágrimas das índias de cá e lá. O pacato povoado presenciara a marcha em êxodo de milhares de guaranis rumo ao Uruguai, lentos passos resignados com a triste sina. Em carros de boi carregavam com devoção as imagens de santos esculpidos que um dia ornamentaram suas 

1 Este conto, ainda por ser revisado, é uma ficção a partir das memórias de Maria Brites Jacques e Alfeu Paim Brittes, a respeito de episódios da vida de sua família. A literatura se vale da história mas a verdade está na cabeça e no coração de cada um que viveu aqueles tempos distantes do início do século XX. Não tenho a pretensão de traduzir o que realmente aconteceu, ainda que busque, na medida dos relatos existentes, alguma verossimilhança. Desde já me desculpo com esta valorosa família pelas eventuais falhas de uma escritora cheia de fantasias. Comprometo-me a alterar os nomes, quando for à publicação. 


imponentes igrejas. No coração, a esperança de construir novos templos em terras do país vizinho. Era então 1828, noventa anos antes do casal Brittes iniciar sua família. 

Marcirio gosta de ouvir as muitas estórias contadas pelos bugres ao redor do fogo. Impressiona-lhe o espírito indômito dos charruas e a capacidade de trabalho dos guaranis. Domam cavalos como ninguém. Estes índios, constata, parecem conversar com os animais. Um de seus carreteiros, dizendo-se descendente do lendário cacique Vaimaca Peru que ali vivera por alguns tempos, contou em detalhes a emboscada que seu povo sofrera em Salsipuedes, dizimados pelo então presidente da República Oriental, Fructuoso Rivera. Traição é um pecado capital, no código do jovem Marcirio. Sabe que os índios eram ferozes com os estancieiros da época, mas por que não combater como homem? Talvez por ser ele mesmo um guerreiro, filho de combatente paraguaio, para o comerciante, pior morte é não lutar pelo que se acredita, frente a frente, olho no olho. 

A mulher e os filhos se arrumam com roupas de domingo para a despedida dos tantos amigos em Manuel Viana. No dia seguinte, sairiam em carretas rumo à Estância do Cerro Agudo, em Santana do Livramento. Ordena às filhas mais velhas, já prontas, que auxiliem as menores a prenderem os cabelos. Quer todas limpas, bem vestidas, ninguém escabelada, parecendo uma china. Maria, a quinta filha do casal, aperta as tranças da irmã Cecy: 

- Você não quer ficar bonita? Argumenta a pacienciosa mana ainda impúbere, tentando acalmar a levada menina de olhos curiosos. 

- Branca, vai olhar na cozinha se a galinhada está como teu pai gosta. Sabes que ele é exigente! Ordena a mãe, pesada por uma gravidez avançada. 

- Não aguento mais tanta galinha, mãe. Por que não tem mais ovelha nesta casa? Argui o guloso Vicente, entrando na sala de bombachas e botas sujas de barro. Roupa de homem. O pai fazia questão de vestir os guris tão logo tiravam as calças curtas. 

- E não sabes que vamos levar o gado para o Cerro Agudo? Papai disse para matar todas as galinhas, difícil de carregar na viagem. Explica Branca, a primogênita, já se comportando com autoridade de moça. Vê lá se tira estas botas sujas daí, guri! Depois eu que tenho que limpar tua porcaria. 

Em 1932, Ecilda espera o décimo terceiro filho. Por ela, não sairiam mais do Passo Novo do Ibicuí. No princípio, fora difícil viver longe da família e das facilidades que tinha no Alegrete, terra onde nasceu. Trabalhara ombro a ombro no comércio junto com Marcirio. Mas a lida não mete medo na ardência da juventude. Não raro, o marido saía por vários dias levando mostruários de estância em estância por aquele pampa sem fim e a esposa atendia a loja com igual desenvoltura, qualquer fosse a mercadoria desejada pelo freguês. Vendiam de tudo um pouco, sacos de farinha, sal, erva mate, arroz, tecidos, sapatos, arames farpados, facas, panelas de ferro, tudo que se possa precisar nesta vida. Moça prendada, ainda engordava os ganhos vendendo bombachas que costurava. 

O sogro não se enganara, Marcirio tinha mesmo faro e la plata parecia correr para suas mãos. Astuto, percebeu que ao invés de voltar das entregas com suas carretas vazias, poderia trazer das fazendas couro e ossos. Próxima ao armazém, abriu uma casa de couros silvestres, que vendia para os vários curtumes do estado. Não era homem de ficar sentado no conforto da lareira. O fogo tinha dentro dele. Em viagem a Porto Alegre, descobriu uma indústria de louças que usava ossos como matéria-prima. Acertou a entrega por trem, que passava na estação do Passo Novo, do outro lado da vila. Os ganhos iam crescendo. Assim como a família. 


Os rebentos nasceram, ano a ano, parideira que era a moça. Aos poucos, Ecilda deixou de ajudar o marido no comércio, envolvida no cuidado da casa e das crianças. Estava ora grávida, ora amamentando. A parteira Manuela Sete Saias tornou-se próxima da família, tantos bebês Brittes deram o primeiro sopro de vida em suas mãos miúdas e experientes. Seu Marcirio acostumou-se às conversas da mestiça. Dizendo que estava nos seus últimos dias, volta e meia entrava no armazém pedindo uns metros de tecido para a saia do enterro. Rindo, o homem dava os panos com gratidão, alertando que morrer isto só depois de auxiliar seu último filho a ver a luz do dia. Lá fazia ela outra saia, usando uma em cima da outra num peculiar figurino. 

As gestações não furtaram a beleza da Senhora Paim Brittes. Ao contrário, é ainda mais atraente do que fora quando recém-casada. Os seios fartos, ancas largas, quadris arredondados, caminhar firme, o olhar que combina um ar misterioso, força e doçura numa pessoa só. Como um símbolo, nunca descuidou de passar babosa para amaciar os cabelos. Pentear-se era um ritual, afastava-se momentaneamente dos encargos de mãe e dona de casa e deixava Afrodite tomar conta de seu espírito. Vaidosa, fazia vestidos, que adaptava nas idas e vindas de sua cintura, segundo os últimos modelos da revista Fon Fon, que o esposo trazia das viagens. 

Subiu o cumprimento dos vestidos, baixou a cintura, cortou os cabelos a la garçonne e encomendou da capital um chapéu cloche, que enterrava até os olhos, obrigando-a a um suave levantar do queixo. A moda sugere posição levemente questionadora, as mulheres não mais aceitam o olhar baixo da submissão milenar. Isto talvez lá em Paris ou no Rio de Janeiro. Na casa dos Brittes, não se mistura lugar de mulher e de homem. Trajada com o seu melhor vestido, faixa amarrada abaixo da pronunciada barriga, desenha vagarosamente o batom carmim em seus lábios e com um lápis as sobrancelhas. Olha os filhos de cima a baixo e sai com os rebentos em fila, despedindo-se dos amigos que fizera em 14 anos vivendo naquela querência. 

Visita os Cortes da Silva, os Marques, os Saldanha, e tantos outros. Em cada casa, uma estória dos tempos vividos juntos. Choros e abraços apertados. O padre recorda o auxílio que a família dera para a construção da capela. A vizinha emociona-se lembrando da quermesse: as moças enfeitadas com diademas, os homens de terno e gravata, as senhoras de chapéu e as crianças correndo. Os doces de frutas que fizemos... A comadre lembra o nascimento de Branca, linda e alva como a mãe. Ecilda sente o coração apertar. A saudade antecipada tira-lhe o fôlego. 

Maria nunca vira sua mãe chorar tanto. Nem com as dores do parto dos irmãos, nem quando tiveram que sair da casa de pedra. Já na sua cadeira de descanso, a mulher senta-se cansada e com o olhar distante. As lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. A filha percebe a tristeza da genitora. Corre para o pátio e colhe umas folhas de laranjeira. 

- Mamãe, fiz para a senhora este chá de laranjeira. Vai lhe fazer bem. 

Ecilda sabe que o marido tem o gualicho, o feitiço dos Pampas. Não nascera para fincar raiz, mas para correr o mundo. Nada tinha a fazer, senão acompanhar. O feitiço dela era o do amor.

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